loading . . . Comer também é um ato geográfico Ambiente alimentar, conceito formulado no final dos anos 1990, designa os lugares em que entramos em contato com a comida: supermercados, escola, hospitais, restaurantes e até o seu celular
A variedade de opções de comida à qual somos expostos diariamente é tanta que dificilmente paramos para pensar que as nossas escolhas alimentares não são lá tão individuais assim. As circunstâncias influenciam, e muito: onde moramos, por onde passamos, onde frequentamos – comer também é um ato geográfico.
Esses espaços em que entramos em contato com a comida são chamados de ambientes alimentares. O conceito define um local em que se adquire, prepara ou consome alimentos, e cuja oferta sofre influência de fatores econômicos, políticos, sociais e culturais.
Para melhor visualizar esse conceito na prática, proponho um exercício: vamos contar por quantos ambientes alimentares você passa em um único dia.
Imagine que você acorda atrasado e decide tomar café na rua. No caminho entre sua casa e o trabalho, há uma panificadora, uma loja de conveniência, um supermercado e os quiosques na estação do transporte coletivo. Até aqui, foram pelo menos quatro tipos.
Na hora do almoço, se você estiver no centro comercial da cidade, terá acesso a uma miríade de restaurantes a quilo ou bares e padarias que servem pratos executivos; talvez até um supermercado ou uma loja de conveniência com a opção de sanduíches prontos. Ou ainda: um restaurante para funcionários na empresa em que trabalha. No mínimo, seis ambientes alimentares.
Checando as redes sociais durante o dia, os posts se alternam na timeline: um vídeo de receita, uma peça publicitária de um lançamento de bebida, uma foto do almoço de um amigo. O conteúdo sobre comida está presente em praticamente todas as redes sociais, e cada plataforma pode ser considerada um ambiente alimentar digital – vamos considerar que você usa duas.
Na volta para a casa, precisa pensar no que jantar: pedir delivery, passar em uma quitanda, um açougue, uma mercearia ou comer fora de casa? Mais cinco ambientes alimentares novos, um deles digital.
Nesse exemplo, contamos 17 ambientes distintos. Imagino que você iria fisicamente a pelo menos três deles e, virtualmente, a outros três.
Ingredientes e produtos não surgem espontaneamente em gôndolas, cardápios, lojas e redes sociais. Mesmo quando a oferta de um lugar tem opções radicalmente diferentes entre si, uma delas será mais promovida – às vezes, de forma sutil. Os ultraprocessados que o digam: estão presentes em praticamente todos os ambientes alimentares aqui citados, com estratégias que os fazem parecer convenientes e inescapáveis.
Por isso, pesquisadores da área de epidemiologia têm se debruçado sobre os ambientes alimentares para entender como eles moldam as escolhas na dieta e como isso impacta a saúde coletiva. Olhar ao redor foi uma das formas encontradas para explicar o aumento dos índices de obesidade e de doenças crônicas não transmissíveis, como diabetes, hipertensão e doenças cardiovasculares. Por serem os pontos de contato entre consumo e sistema alimentar, os ambientes alimentares são pontos estratégicos para promover dietas mais saudáveis.
Possibilidades de intervenção não faltam. Economicamente, aplicar impostos sobre ultraprocessados e retirar isenções fiscais para estas indústrias são um caminho. Do ponto de vista da saúde coletiva, está a regulamentação da publicidade – especialmente voltada a crianças – e a restrição da presença destes produtos em ambientes como escolas e hospitais. Nas escolas de dois municípios do estado do Rio de Janeiro, essa regulação já é uma realidade.
Entender como o entorno influencia a alimentação é um assunto recente na ciência, da virada do século 20 para 21. A bem da verdade, o médico brasileiro Josué de Castro já havia relacionado espaço e alimentação décadas antes, ao estudar a desnutrição. Em Geografia da Fome, livro de 1946, Castro fala de “áreas alimentares”, um termo que se refere a regiões geográficas, seu conjunto de recursos e a influência destes na dieta e nas características biológicas e socioculturais de seus habitantes.
Em 1995, a expressão deserto alimentar apareceu pela primeira vez em um documento. Foi em um relatório do governo escocês ao citar como um morador de um conjunto habitacional se referiu ao lugar em que morava. O termo designa uma área urbana populosa em que os moradores não têm acesso a uma dieta saudável e acessível. Naquela época, a classificação dos alimentos era representada pela pirâmide alimentar, e uma dieta saudável era considerada rica em carboidratos, hortaliças e frutas, com menor presença de gordura e doces.
A influência do ambiente na alimentação passou a ser objeto de estudo científico sistematicamente a partir de 1999, com o pesquisador neozelandês Boyd Swinburn e o australiano Gary Egger. Naquela época, pesquisadores de todo o mundo tentavam entender o que estava causando o crescimento de doenças crônicas não transmissíveis. Ao cunhar a expressão “ambiente obesogênico”, Swinburn e Egger dão nome a ambientes que favorecem escolhas de alimentos não saudáveis e seu consumo em grandes quantidades.
Essa dinâmica passou a ser estudada em países de alta renda tendo como foco supermercados, redes de varejo, fast food, escolas e hospitais. São espaços formais, em que as estratégias, a disposição ou a oferta são similares.
Em 2006, um artigo de Hillary Shawn acrescentou novas barreiras observadas em desertos alimentares. Ela soma à questão geográfica e financeira a capacidade física e de conhecimento. À época, já havia indícios de que o consumo de altos níveis de gordura, sal ou açúcar poderiam causar obesidade e problemas de saúde associados, mas o conceito de ultraprocessados ainda não existia.
A partir de entrevistas com 234 residentes de diferentes áreas do Reino Unido e o mapeamento de áreas residenciais e a distância a pelo menos um estabelecimento que comercializa frutas e vegetais frescos, Shawn elencou as diferenças encontradas para acesso a alimentos em subúrbios pobres e ricos e em áreas rurais, e levou em conta até problemas de percepção, citando casos em que os moradores não reconhecem alguns estabelecimentos como fontes de comida saudável.
Três anos depois, um artigo publicado por estadunidenses estuda a disponibilidade de alimentos em Nova Orleans pós-furacão Katrina. Os autores analisaram o tipo de estabelecimento e a oferta de alimentos e produtos em toda a cidade e apontaram para a imprecisão dos conceitos de deserto alimentar empregados nas pesquisas até aquele momento, entre 1998 e 2008: “áreas com poucas instalações alimentares”; “áreas povoadas com pouca ou nenhuma oferta de varejo alimentar”; “áreas socialmente desfavorecidas dentro das cidades que têm mau acesso a varejo de alimentos”; e “uma área com acesso limitado a alimentos acessíveis e nutritivos”.
Categorizando as regiões de Nova Orleans de acordo com essas quatro definições, os pesquisadores chegaram a resultados tão diferentes que esvaziavam a força da metáfora: o percentual de desertos alimentares na cidade variava de 17% a 87% a depender dos critérios usados.
Os autores introduzem então o conceito de pântano alimentar para fazer alusão a áreas inundadas de opções não saudáveis, como a presença de restaurantes de fast food, lojas de conveniência e outros comércios onde a oferta é majoritariamente (ou totalmente) de produtos ricos em energia para serem consumidos em grandes quantidades. Essa configuração e disponibilidade geraria problemas nutricionais mais urgentes que a falta de acesso, defendem os pesquisadores.
Novas categorias e o Sul global
Alguns anos depois, os países de baixa e média renda iniciam os estudos em ambientes alimentares e encontram outra realidade em campo: diferentemente dos países de alta renda, em que os habitantes adquirem alimentos predominantemente no mercado formal, os países do Sul global têm uma realidade mais complexa, com aquisição em mercados informais, coletas na natureza e agricultura de subsistência.
Segundo um estudo publicado na revista Nature, dos 570 milhões de estabelecimentos agrícolas de todo o mundo, 475 milhões têm menos de dois hectares de terra. Eles são responsáveis por aproximadamente um terço do abastecimento alimentar e 92% deles estão em países de baixa e média renda.
Daí, surge a necessidade de repensar as ferramentas e metodologias para medir ambientes alimentares em realidades distintas, bem como cunhar um conceito que dê um passo atrás e enxergue o campo de estudo para além dos ambientes obesogênicos.
Os estudos em todo o mundo avançam trazendo subcategorias, como o ambiente alimentar organizacional, que agrupa escolas e universidades, locais de trabalho, igrejas, hospitais e penitenciárias. Com a presença cada vez mais forte do meio virtual no cotidiano, aplicativos de delivery, redes sociais e anúncios definidos por algoritmos, definem-se esses espaços como ambientes alimentares da informação e digital.
A classificação NOVA, criada em 2009 pelo Nupens, da USP, foi incorporada aos poucos nos estudos. O novo paradigma – que leva em conta o grau de processamento dos alimentos em vez de sua composição nutricional – começa a ser usado como parâmetro em metodologias para investigar a qualidade da dieta de uma população. É quando salgadinhos, bolachas recheadas, refrigerantes e macarrão instantâneo passam a ser classificados como ultraprocessados.
Em 2012, um dos primeiros artigos que estuda ambientes alimentares analisando a disponibilidade de ultraprocessados é publicado no Brasil. A pesquisa investigou a qualidade dos alimentos ofertados próximos a escolas em Santos, litoral de São Paulo, e constatou que os pontos de venda com mais ultraprocessados estavam significativamente mais próximos de escolas do que os que tinham uma maioria de alimentos com menor grau de processamento.
A classificação NOVA modifica, inclusive, os conceitos de pântano e de deserto alimentar. Pântano alimentar passa a ser a área em que a oferta de ultraprocessados é maior que a de alimentos in natura ou minimamente processados. E o deserto alimentar, a área em que a disponibilidade de alimentos in natura e minimamente processados é escassa.
Em 2021, o Joio publicou a série de reportagens Comida que falta, comida que sobra, sobre ambientes alimentares na cidade de São Paulo, e constatou que as regiões mais ricas da cidade eram pântanos, e as regiões mais pobres variavam: algumas eram desertos, outras eram desertos e pântanos ao mesmo tempo. Outros exemplos que são tanto pântano quanto deserto e também foram alvo de investigação pelo Joio são os voos e os aeroportos e o metrô de São Paulo.
Até aqui, todos os ambientes alimentares apresentados falam sobre a ponta final do sistema alimentar, quando o alimento é consumido em espaços urbanos. No entanto, pesquisadores vêm ampliando essa definição para abarcar outros modos de acesso e relação com os alimentos, o que inclui práticas de cultivo, coleta e deslocamento.
A abordagem centrada no consumo urbano não dá conta da diversidade de formas de acesso à comida que existem em diferentes territórios e culturas. Em muitos contextos, o alimento é cultivado, colhido ou trocado fora do mercado formal e do ambiente urbano.
Um artigo estadunidense de 2020 expande a tipologia ao apresentar definições de ambientes alimentares selvagens, cultivados e construídos. As novas classificações se justificam, segundo os autores, por refletirem a variedade de ambientes alimentares com os quais os habitantes de países de baixa e média renda interagem. Caracterizar os diferentes ambientes alimentares é um primeiro passo para criar metodologias de pesquisa e ferramentas de medição.
O estudo separa os ambientes alimentares entre naturais e construídos. No primeiro grupo estão os ambientes alimentares selvagens, com pouca ou nenhuma intervenção humana, como florestas, terrenos baldios, savanas e rios; e os ambientes alimentares cultivados, em que há maior interferência humana, como campos, pomares, pastos, quintais e aquicultura. Esses espaços são considerados ambientes alimentares quando são usados para subsistência, e não quando produzem alimentos para a venda.
O grupo de ambientes alimentares construídos, por sua vez, compreende os espaços criados por humanos onde se ofertam alimentos. É dividido entre mercado formal e mercado informal. No primeiro, estão estabelecimentos como supermercados, redes de varejo, mercearias, restaurantes, feiras de pequenos agricultores e ambientes alimentares organizacionais. Já no informal, estão as mercearias úmidas (como os municipais e públicos, com oferta diária de produtos frescos), os vendedores ambulantes, o comércio de barracas e outras formas de comércio popular que operam fora das normas legais.
Historicamente, as pesquisas focaram em ambientes alimentares fixos e estáticos, como bairro de residência, escolas e locais de trabalho. Estudos mais recentes, no entanto, trazem outras perspectivas, como o artigo sobre a exposição a fast food durante o deslocamento diário, de pesquisadores dos Estados Unidos. O artigo estuda os ambientes alimentares móveis, ou seja, a disponibilidade de alimentos considerando os itinerários feitos pelas pessoas, e conclui que a exposição a unidades de fast food em seus trajetos cotidianos aumenta significativamente as visitas a esses locais.
Os autores afirmam que seria mais eficaz intervir em áreas pelas quais passa um grande volume de pessoas diariamente do que em bairros residenciais. Assim, diminuir a presença e publicidade de redes de fast food em centros comerciais, de viagem (aeroportos, rodoviárias e terminais de ônibus e metrô) e de trabalho seria um passo para promover escolhas alimentares mais saudáveis.
Apesar do desenvolvimento das pesquisas se darem atualmente tanto em países do Norte como do Sul global, os conceitos estão em xeque diante das particularidades de países de baixa e média renda, como o Brasil, e das populações vulneráveis nos países de alta renda.
O termo ambiente alimentar derivar de ambientes obesogênicos, um conceito criado por um pesquisador do Norte global, é um ponto questionado pela brasileira Juliana Carús, doutora em saúde pública. E para a antropóloga estadunidense Ashanté Reese, o conceito de “deserto alimentar” é simples demais para explicar a realidade das comunidades negras e de baixa renda dos Estados Unidos.
Em sua tese de doutorado, Juliana Carús observa que a produção científica internacional estuda o tema focando na obesogenicidade dos ambientes e em sua influência sobre os consumidores. A autora constatou que, entre 2001 e 2021, os estudos aumentaram expressivamente, especialmente no Brasil. Mas sempre focados no consumidor urbano e na obesogenicidade dos ambientes.
Para ela, esse entendimento de ambientes alimentares não deveria valer para as pesquisas no Brasil, porque formação territorial, produção de alimentos e tensões entre agricultura familiar, agronegócio e indústria de ultraprocessados não estão contempladas.
Sua crítica é que esse olhar deixa de fora uma questão central: a origem e a produção dos alimentos, bem como as relações de poder que estruturam a sociedade. “Não considera as relações sociais de produção econômica do sistema capitalista, nem as injustiças sociais por ele produzidas e aspectos importantes como a distribuição e o acesso à terra, e outras formas de produção, circulação e consumo de alimentos são invisibilizados”, resume.
Carús propõe uma revisão do conceito que inclua as perspectivas dos brasileiros Josué de Castro, médico, e Milton Santos, geógrafo, levando em conta a historicidade e a territorialidade dos sistemas alimentares e entendendo o espaço como resultado das relações humanas e dos conflitos por terra, trabalho e acesso ao alimento.
As críticas de Carús dialogam, em outro contexto, com as reflexões da antropóloga estadunidense Ashanté Reese, que também questiona a forma como o acesso à alimentação tem sido tratado nos estudos sobre ambientes alimentares, especialmente quando se trata de populações negras.
No livro Black Food Geographies: Race, Self-Reliance, and Food Access in Washington, D.C. (disponível apenas em inglês), Reese afirma que o termo “deserto alimentar” apaga o componente racial ao se concentrar apenas na ausência de supermercados em determinadas áreas, ignorando como o racismo estrutural e a segregação urbana moldam o acesso à alimentação. Além disso, o conceito reforça o estereótipo negativo de que populações negras não têm conhecimento ou interesse por alimentação saudável.
Como alternativa a “deserto alimentar”, Reese propõe os conceitos “apartheid alimentar” e “geografias alimentares negras”. O primeiro expõe diretamente o papel do Estado na produção de desigualdades. E o segundo considera a agência, criatividade e resistência das comunidades negras em elaborar estratégias de autossuficiência. Para a autora, olhar para essas práticas é fundamental para imaginar um sistema alimentar mais justo. http://dlvr.it/TMQC54