loading . . . Crítica: Maré Tardia atualiza o punk rock para exorcizar distopia dos tempos atuais Banda de rock capixaba abraça a catarse sonora em ‘Sem Diversão Pra Mim’, disco que capta bem as angústias de sua geração Numa época em que fazer prognósticos sobre o amanhã parece impossível, um pouco de euforia niilista é sempre bem-vinda. Ajuda a suportar as desilusões e perrengues do dia a dia e o no-future do noticiário na base do som e da fúria. Em “Sem Diversão Pra Mim”, a banda capixaba Maré Tardia dança à beira do abismo ao som do velho, surrado e quase sempre desacreditado rock, com suas arestas, distorções, urgência, microfonias, suor, velocidade e paixão — vida, apesar de tudo.
O lançamento da Deckdisc, o segundo do jovem quarteto de Vila Velha formado por Bruno Lozório (guitarras/voz), Gus Lacerda (guitarras/voz) Canni (baixo/voz) e Vazo (bateria), é um álbum de inocências perdidas. Na capa, um crocodilo enorme nada numa piscina ao lado de uma criancinha: perspectiva sempre há, difícil é achar alguma que preste.
“Sem Diversão Pra Mim” cospe (com algum romantismo) verdades incômodas em todo mundo que respira em 2025; é uma obra plenamente consciente da escassez de alternativas à nossa dose diária de distopias. Mas, em vez de aceitar a paralisia, abraça a catarse sonora, como uma criança inocente que brinca numa piscina com um monstro prestes a devorá-la.
Em 30 minutos intensos, Maré Tardia nos sintoniza com os sentimentos depressivos que estão no ar. “Sonhar é tão angustiante”, reconhece Gus em “Ian Curtis”, tradução poética e certeira do realismo capitalista de Mark Fisher, um dos pontos altos de um álbum que começa e acaba em alta rotação.
Versos como “Todo mundo foi mas eu fiquei pra trás” (“Tarde Demais”), “Eu não sei o que dizer” (“Sem Diversão Pra Mim”) e “Eu sei que nada vai mudar” (“Nadavai”) são outros instantâneos impressionistas de imobilismo, impregnados nas 10 composições do álbum.
De saída, avisam: “Eu vi o Leviatã / Eu tive que acreditar”. Leviatã é aquele ser mitológico com aparência péssima e fama pior ainda, associado ao Mal e ao Caos e descrito ora como uma serpente marinha, ora como um crocodilo gigante. Provavelmente parecido com o da arte da capa de Gustavo Moraes.
Mas e aí? O que resta quando se toma consciência do Mal e do caos? A aventura mágica e regenerativa da criação. A linguagem crua do punk rock, que sempre soube transformar desesperança em energia primal, frita da produção do guitarrista e engenheiro de som Alexandre Capilé (Sugar Kane) e de Gus Lacerda para encher de verdade as composições de Bruno e Gus.
Essa energia fornece à Maré Tardia uma assinatura própria e bem-vinda, com seus riffs e solos ansiosos e explosivos, indie praieiro injetado de psychobilly, shoegaze anfetamínico, ectoplasmas de Ramones e Inocentes, notas de Clash e Titãs, gotas de Fugazi e Jon Spencer Blues Explosion, tempero de Cramps e Netunos.
Tem muita coisa para ouvir na meia hora de duração de “Sem Diversão Pra Mim”, até uma bossa subliminar na bela “Nunca Mais”, que fecha o álbum e aponta (será?) novas direções para os sons da Maré Tardia.
Ou seja, há futuro sempre. E tem, o tempo todo, o amor, antídoto contra a desesperança. “Não dá mais / Mas não se vá”, pedem Bruno e Gus, em “Não Se Vá”, única música assinada em conjunto pelos guitarristas. Entre perdas e desilusões, a Maré Tardia merece botar todos os seus fracassos nas paradas de sucesso.
* Especial para O GLOBO http://dlvr.it/TLPmnn