loading . . . 'Recursos para os povos da floresta estão se perdendo na burocracia', diz líder seringueiro Raimundão O modo de vida dos extrativistas da Amazônia, unindo preservação da floresta e produção rural sustentável, inspira práticas novas na agricultura e atraem investimento para o país, mas um dos líderes históricos deste grupo diz que as políticas de captação de recursos têm beneficiado pouco essa população.
— Muitos recursos têm ficado em meio de viagem nessa burocracia, nessa ganância de muitos que estão aí no poder, de pegar o recurso em fez de fazer ele chegar onde devia — afirma o líder seringueiro Raimundo Mendes de Barros, o Raimundão, primo de Chico Mendes que também foi pioneiro do movimento ambientalista no Brasil.
Diferentemente de Marina Silva, que emergiu da mesma geração de seringalistas de Xapuri (AC) na década de 1980, Raimundão permanece até hoje na reserva extrativista da região, tocando um projeto de integração entre lavoura e floresta. Entre os ambientalistas-raiz do Brasil, é considerado um guru.
Aos 79 anos de idade, o líder seringalista de esquerda ainda percorre de moto a região todo dia e atua na mediação de conflitos de terra, problema crônico no Acre há décadas. Em entrevista ao GLOBO, Raimundão, fala sobre o legado de seu primo e sobre o que espera para o futuro das comunidades extrativistas da Amazônia.
O que o sr. espera da COP30 para o movimento socioambiental no Brasil?
A COP-30 é um momento de reviver e dar mais visibilidade à luta dos caboclos e das caboclas que nasceram e que se criaram aqui nessa região e que por muitos anos viveram no anonimato, no domínio do patrão da borracha, no domínio de outros patrões e depois do latifúndio. Foi a partir da luta dos extrativistas, começada aqui em Xapuri na liderança de Chico Mendes e de Wilson Pinheiro, que a gente conseguiu fazer com que chegasse um dia ao Planalto Central do Brasil e lá fora, nos outros países, que a Amazônia estava sendo destruída, inclusive com um discurso de desenvolvimento. Desenvolver o quê?
Destruir a floresta, destruir os caboclos e as caboclas que nasceram e que se criaram aqui, que tinham uma vida difícil, mas que viviam tranquilo aqui, preservando essa floresta, que o seringueiro nunca destruiu, o índio nunca destruiu. O que precisava, dentro daquela época, era que a atenção e o poder público viessem aqui para dentro da floresta para dar aos caboclos e as caboclas aquilo que o cidadão e a cidadã têm direito: chegarem na escola, vestirem bem e terem assistência médica...
E foi preciso acontecer tudo o que aconteceu, inclusive um latifúndiário, covarde, tirar a vida do nosso companheiro, para poder o mundo saber o que estava acontecendo aqui.
A COP30, sem dúvida nenhuma, é uma continuidade dessa luta que começou lá nos anos 1970. E isso só vai ser possível porque nós temos um administrador no nosso país que conhece a nossa luta, que viveu a nossa luta, que veio para cá ser solidário quando assassinaram o Chico Mendes. Então a gente espera que esse acontecimento agora em dezembro, que a COP30 fortaleça mais essa luta nossa aqui e traga mais benefício para melhorar as nossas condições de vida.
A borracha tem peso pequeno na economia da Amazônia, e o extrativismo com outros produtos, como a castanha e pupunha, mudou muito desde a morte do Chico Mendes. Como vocês fazem para manter o modo de vida extrativista aqui no Acre?
Primeiro, a gente faz um processo de conscientização para a nova geração. A nova geração está muito à vontade, achando que cortar a seringa e quebrar a castanha é coisa do passado. Muitas vezes a própria escola, o ensino oficial, bota isso na cabeça deles. E nós temos que combater os malfazejos, eu chamo assim, aqueles que estavam destruindo a Amazônia, que tiveram que recuar. Mas lá de onde eles estão, eles continuam conspirando nos bastidores e procurando chegar na cabeça dos nossos jovens, dessa nova geração.
Então esse é um dos processos fundamentais, é um trabalho de educação com muito afinco para fazer com que essa nova geração compreenda a necessidade de se preservar as florestas, porque preservar as florestas é preservar a vida: vida humana e vida do planeta.
Além disso, a gente tem fazer um consórcio, consorciar a atividade, uma coisa ainda muito embrionária, mas está começando com a castanha e com a seringa. Isso significa, por exemplo, aproveitar capoeiras de áreas que já estão degredadas, inclusive que viraram pastagens, para que essas áreas possam estrutura para fazer voltar a ter ali seringa, castanha, mogno, cerejeira, cedro, café, cacau, açaí.
Isso é de fundamental importância, para fazer com que se alavanque a melhoria das condições de vida com a diversificação da produção. Todas essas árvores vão começar a trazer de novo aquilo que pereceu na motosserra, no fogo. Começa a se ter novamente o reflorestamento, mas dessa vez com mais material e madeiras nobres, para alimento, para indústria.
Vocês têm conseguido atrair investimento necessário? Essa onda de projetos para atrair dinheiro externo, por exemplo, têm trazido algum resultado?
Nós precisamos que o recurso que hoje sai da Alemanha, da Noruega, de outros países que estão preocupados, possam chegar na ponta. Os recursos precisam chegar aqui onde nós estamos sem se perder na viagem, na burocracia, como têm acontecido muitas vezes, também por ganância de muitos que estão no poder. Esse recurso pode ajudar na recuperação das áreas degredadas e reflorestamento, mas também ajudaria a gente a ter uma faculdade, ter a industrialização dos produtos aqui na floresta, com o melhoramento da eletrificação, saneamento e o melhoramento das vias de acesso.
Esses recursos são muito bem-vindos, mas tem que sair de lá e chegar aqui. No nosso estado os seringueiros estão com três anos que não recebem o subsídio da borracha. Para onde é que está indo esse dinheiro? Nós temos uma carência muito grande de estruturar melhor a nossa reserva.
Nós avançamos quando tivemos governo no estadual,Jorge Viana, Binho Marques e Tião Viana, que foram governos da esquerda, e quando tivemos o Lula, também no terceiro mandato. Foi graças a esses mandatos populares que a gente conseguiu avançar. Mas tivemos um atraso de seis anos com esses governos antes. E seis anos de atraso esculhamba tudo.
Como está a situação de segurança para vocês aqui, quase quatro décadas depois do assassinato do Chico Mendes?
Nós temos conflito dentro da reserva, não nego de forma nenhuma. Muitos dos beneficiados estão pegando as colocações de seringa, cortando e vendendo pedaço, o que é um crime, porque a colocação não é uma propriedade dele, é uma propriedade da União. Eles sabem disso, mas tem os que estão conspirando por debaixo dos panos, incentivando eles a fazerem isso. Ainda teimam de fazer um roçado além do que precisa, quem ném é roçado. É derrubada para aumentar pasto. Nós temos isso aqui dentro da reserva.
Mas nós temos aqui do lado ainda seringueiros que não estão dentro da reserva, mas estão em áreas de fazendeiros e estão em conflito. O prefeito que entrou agora junto com o governador estão colocando a polícia contra os nossos companheiros. Isso é coisa que acontecia na época do assassinato do Chico Mendes, quando o governo era deles, quando o presidente era deles. Agora está acontecendo aqui no estado essa mesma coisa.
Então, é muito delicada a situação que a gente está vendo. Eu um dia desse eu tive que ir no Ministério Público aqui em Rio Branco fazer uma exposição do que está acontecendo aqui e das ameaças que estavam existindo contra mim.
O que o sr. está produzindo em volta da sua casa aqui na reserva?
Castanha, borracha, agricultura de subsistência, pequenas criações. Aqui criamos entre 30 e 32 cabeças de gado. Aqui e acolá a gente vende uma cabecinha e vende galinha. Aqui a gente recebe muitas visitas de fora. A minha companheira é uma pessoa que cozinha um feijão gostoso. E o pessoal paga.
Somos aposentados já. O caboclo e a cabocla aqui, tendo consciência e gostando de trabalhar, eles vivem sem se aperrear, trabalhando na castanha, na seringa, na agricultura e na criação de pequeno porte. Agora eu estou começando a plantar café, estou plantando cacau, plantando açaí.
Mas é necessário que tenha apoio para se fazer isso. Apoio em que? Assistência técnica, maquinário para a gente fazer o melhoramento da terra, adubo, semente...
- O que o Chico Mendes representa para as lideranças ambientais hoje? A forma como ele propunha resolver as coisas, com muita coragem para o enfrentamento, mas muito diálogo também, marcou o ambientalismo no Brasil. O sr. e outras lideranças levaram adiante esse jeito de liderar?
O Chico foi insubstituível e vai continuar sendo. Eu não tenho o cacife que ele tinha. Eu, por mais que me esforce, não chego nem a 20% do que ele era. O Chico foi um achado aqui no Seringal, nascido aqui com uma grandeza e um brilhantismo extraordinário. O Chico nasceu, criou-se da mesma forma como eu e outros milhares que nasceram aqui. São aqueles que se criaram, que produziram riqueza, morreram, e se foram sem ficar nas estatísticas do município ou do estado, porque sequer um registro tiveram.
O Chico nasceu nesse campo, na mesma situação que eu e todos da minha geração e da geração antes de nós. Mas ele veio nomeado por Deus para ser a pessoa que ele foi. Ele conseguia convencer e aglutinar a sua categoria.
Ele conseguia transmitir lá para fora as coisas de uma forma que as pessoas entendiam muito bem, por isso mesmo a liderança dele estava num processo de crescimento.
Mas o latifúndio e a política do capital, essa política mesquinha e ordinária, sabia em que ele ia se transformar em algo bem maior. Talvez o Chico hoje fosse um segundo Lula. Por isso procuraram matar ele, pela importância que o Chico tinha.
Mas eu não tenho isso. Eu sou primo dele, o sangue que corria na via dele corre na minha também, mas eu não consigo assimilar ele.
Qual é sua relação de parentesco exatamente?
O pai dele era irmão da minha mãe. Eles vieram ainda crianças do Nordeste pra cá. Chegaram aqui em 1918 ou 1920. A minha mãe era menina, e o pai do Chico, que era o mais velho, já se pondo rapazinho.
O senhor conversa ainda com Marina Silva, que cresceu aqui? Ela ajuda vocês?
Eu tenho uma dificuldade danada. Eu gosto muito da Marina. A Marina dormiu aqui em casa. A Marina caminhou aqui nesses caminhos, quando era varadouro, pra participar junto com nós dos empates [protestos pacíficos contra desmatamento]. Eu conheci a Marina na formação das comunidades eclesiais de base em Rio Branco, e ajudei ela a ser deputada estadual e depois a ser senadora da República.
Mas depois a gente se distanciou, não sei por que. Quando ela era ministra no segundo mandato do Lula ela deixou o governo, voltou para o cargo dela, trocou de partido, trocou de religião...
Mas a gente se encontrou no ano retrasado em Brasília. Ela já estava no ministério de novo, o Lula tinha levado ela. Eu tenho muito apreço, tenho muita admiração por ela, mas não tenho uma interlocução, não tenho quem me faça uma ponte junto com ela. E também não tenho essa ponte com o Lula, que é um amigo meu pessoal.
Como o sr. conheceu Lula?
Ele começou a ser amigo da gente quando assassinaram o Wilson Pinheiro, porque ele veio ser solidário com os trabalhadores, os seringueiros de Brasiléia. Depois, quando o Chico foi assassinado, a gente voltou a se encontrar.
Andei de avião junto com ele quando ele veio inaugurar a Ponte da Amizade aqui, Brasil-Peru. Almoçamos junto no avião, palestramos, brincamos. Sempre ele foi uma pessoa muito dedicada. Quando nós estávamos almoçando ele perguntou se o tatu estava bom, porque ele tinha comido tatu no leite de castanha quando veio aqui.
Eu preciso imensamente agora fazer um contato diretamente com eles para uma questão aqui que está acontecendo na extrema da nossa reserva, que é muito delicada. Tem um fazendeiro que está fazendo mil e uma estripulias, inclusive jogando veneno por avião, matando as nossas abelhas aqui. Daqui até ali tem no máximo um quilômetro e meio. Quando ele joga o veneno de avião, o vento traz para cá.
Aqui tinha muita abelha. Quando chegava a floragem da seringa e das outras árvores, fazia gosto. Agora não se vê nenhuma abelha. Os nossos mamoeiros, a grande maioria morreu, porque o mamão é muito sensível a veneno. Os seringueiros que estão mais perto dele perderam feijão e outras coisas.
Então, está na hora do nosso governo desapropriar essa fazenda e criar, quem sabe, uma reserva ou fazer um projeto de manter a parte de floresta. A outra parte que já está deteriorada, talvez dê para fazer pequenos lotes, ou lotes maiores, dando condição para o pessoal reflorestar.
Como que está a produtividade das castanheiras? A gente vê na estrada de Rio Branco até aqui muita castanheira em lugar que já está desmatado, algumas já mortas.
A quantidade de castanhais que foram abatidos de Rio Branco até Assis Brasil não está no gibi. Foi uma destruição completa mesmo. Mas é impressionante como as árvores têm um poder de regeneração. Assim mesmo, o Acre ainda é o estado da Amazônia que produz mais castanha. Essa safra agora vai ser uma super safra. Nós acabamos de quebrar as castanhas da safra do ano passado, que foi uma safra fraca, mas deu muito dinheiro, porque rendia de R$ 200 a R$ 220 uma lata de castanha. Antes não costumava chegar a R$ 100. É porque agora o mundo está interessado em consumir um produto natural, um produto rico.
Pioneiros do movimento socioambiental como o sr. vieram da esquerda, mas hoje existe uma necessidade de atrair a direita para a causa, inclusive na COP30, para combater a mudança do clima. O sr. tem esperança de engajar a direita no ambientalismo?
Pelo que eu conheço da doutrina da direita, vejo muita dificuldade. Eles aproveitam esses eventos mais como um momento festivo ou um momento para eles barganharem mais dinheiro. Mas quero deixar para eles um convite para que pensem menos nas suas vaidades e nas suas doutrinas capitalistas.
Que eles pensem mais na vida dos seres humanos que estão embrenhados nas florestas amazônicas, nos rios, nas cidades. Que eles renunciem de parte das suas ganâncias e deixe que sobre mais um pouco de recurso para ser investido a favor das populações que são a razão do crescimento do país. O país cresce por causa do trabalho dos trabalhadores e das trabalhadoras.
Eu quero chamar a atenção do capital, e da doutrina da direita, para que se sensibilizem com a causa dos caboclos e das caboclas sofridos do campo e das cidades. Espero que eles possam ter sensibilidade e, com esses encontros, possam mudar um pouco seus comportamentos. Entendo que é difícil, mas é possível mudar.
(O repórter Rafael Garcia viajou a Xapuri (AC) a convite do GCF) https://sem-paywall.com/http%3A%2F%2Fdlvr.it%2FTNDv63